sexta-feira, 2 de agosto de 2013

O Cavalo de Tróia, o relativismo ético e as novas formas de tirania

Por Professor Rodrigo Gurgel




O governo federal -- apoiado po
r senadores e deputados federais, e pelo velho e conhecido silêncio obsequioso da CNBB -- acaba de aprovar o PLC 03/2013: na prática, um Cavalo de Tróia (na feliz expressão de Monsenhor Juan Claudio Sanahuja) para introduzir o aborto irrestrito no país.

Diante de tudo que tenho lido nos últimos dias, lembrei-me de um longo trecho da encíclica EVANGELIUM VITAE, de João Paulo II, no qual ele faz reflexões não apenas sobre a questão do aborto em si, mas ampliando-a, de forma a mostrar os problemas éticos e políticos que se encontram no substrato da "cultura democrática" do nosso tempo, em que a democracia é mitificada graças ao relativismo ético, transformando-se, como vemos hoje no Brasil e nos países latino-americanos controlados pela esquerda, num conjunto de decisões tirânicas.

O trecho da encíclica, extremamente lúcido, fala por si mesmo. E as conclusões são óbvias: vivemos sob uma tirania.

Leiam e tirem suas conclusões:

69. Certo é que, na cultura democrática do nosso tempo, se acha amplamente generalizada a opinião segundo a qual o ordenamento jurídico de uma sociedade haveria de limitar-se a registrar e acolher as convicções da maioria e, conseqüentemente, dever-se-ia construir apenas sobre aquilo que a própria maioria reconhece e vive como moral. Se, depois, se chega a pensar que uma verdade comum e objetiva seria realmente inacessível, então o respeito pela liberdade dos cidadãos — que, num regime democrático, são considerados os verdadeiros soberanos — exigiria que, a nível legislativo, se reconhecesse a autonomia da consciência de cada um e, por conseguinte, ao estabelecer aquelas normas que são absolutamente necessárias à convivência social, se adequassem exclusivamente à vontade da maioria, fosse ela qual fosse. Desta maneira, todo o político deveria separar claramente, no seu agir, o âmbito da consciência privada e o do comportamento público.

Em conseqüência disto, registram-se duas tendências que na aparência são diametralmente opostas. Por um lado, os indivíduos reivindicam para si a mais completa autonomia moral de decisão, e pedem que o Estado não assuma nem imponha qualquer concepção ética, mas se limite a garantir o espaço mais amplo possível à liberdade de cada um, tendo como único limite externo não lesar o espaço de autonomia a que cada um dos outros cidadãos também tem direito. Mas, por outro lado, pensa-se que, no desempenho das funções públicas e profissionais, o respeito pela liberdade alheia de escolha obrigaria cada qual a prescindir das próprias convicções para se colocar ao serviço de qualquer petição dos cidadãos, que as leis reconhecem e tutelam, aceitando como único critério moral no exercício das próprias funções aquilo que está estabelecido pelas mesmas leis. Deste modo, a responsabilidade da pessoa é delegada na lei civil com a abdicação da própria consciência moral, pelo menos no âmbito da ação pública.

70. Raiz comum de todas estas tendências é o relativismo ético, que caracteriza grande parte da cultura contemporânea. Não falta quem pense que tal relativismo seja uma condição da democracia, visto que só ele garantiria tolerância, respeito recíproco entre as pessoas e adesão às decisões da maioria, enquanto as normas morais, consideradas objetivas e vinculantes, conduziriam ao autoritarismo e à intolerância.

Mas é exatamente a problemática conexa com o respeito da vida que mostra os equívocos e contradições, com terríveis resultados práticos, que se escondem nesta posição.

É verdade que a história registra casos de crimes cometidos em nome da «verdade». Mas crimes não menos graves e negações radicais da liberdade foram também cometidos e cometem-se em nome do «relativismo ético». Quando uma maioria parlamentar ou social decreta a legitimidade da eliminação, mesmo sob certas condições, da vida humana ainda não nascida, porventura não assume uma decisão «tirânica» contra o ser humano mais débil e indefeso? Justamente reage a consciência universal diante dos crimes contra a humanidade, de que o nosso século viveu tão tristes experiências. Porventura deixariam de ser crimes, se, em vez de terem sido cometidos por tiranos sem escrúpulos, fossem legitimados por consenso popular?

Não se pode mitificar a democracia até fazer dela o substituto da moralidade ou a panacéia da imoralidade. Fundamentalmente, é um «ordenamento» e, como tal, um instrumento, não um fim. O seu caráter «moral» não é automático, mas depende da conformidade com a lei moral, à qual se deve submeter como qualquer outro comportamento humano: por outras palavras, depende da moralidade dos fins que persegue e dos meios que usa. Registra-se hoje um consenso quase universal sobre o valor da democracia, o que há de ser considerado um positivo «sinal dos tempos», como o Magistério da Igreja já várias vezes assinalou. Mas, o valor da democracia vive ou morre nos valores que ela encarna e promove: fundamentais e imprescindíveis são certamente a dignidade de toda a pessoa humana, o respeito dos seus direitos intangíveis e inalienáveis, e bem assim a assunção do «bem comum» como fim e critério regulador da vida política.

Na base destes valores, não podem estar «maiorias» de opinião provisórias e mutáveis, mas só o reconhecimento de uma lei moral objetiva que, enquanto «lei natural» inscrita no coração do homem, seja ponto normativo de referência para a própria lei civil. Quando, por um trágico obscurecimento da consciência coletiva, o ceticismo chegasse a pôr em dúvida mesmo os princípios fundamentais da lei moral, então o próprio ordenamento democrático seria abalado nos seus fundamentos, ficando reduzido a puro mecanismo de regulação empírica dos diversos e contrapostos interesses. Alguém poderia pensar que, na falta de melhor, já esta função reguladora fosse de apreciar em vista da paz social. Mesmo reconhecendo qualquer ponto de verdade em tal avaliação, é difícil não ver que, sem um ancoradouro moral objetivo, a democracia não pode assegurar uma paz estável, até porque é ilusória a paz não fundada sobre os valores da dignidade de cada homem e da solidariedade entre todos os homens. Nos próprios regimes de democracia representativa, de fato, a regulação dos interesses é freqüentemente feita a favor dos mais fortes, sendo estes os mais competentes para manobrar não apenas as rédeas do poder, mas também a formação dos consensos. Em tal situação, facilmente a democracia se torna uma palavra vazia.

-- Para aqueles que desejarem, a íntegra da encíclica, em português, está neste link: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_25031995_evangelium-vitae_po.html

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